Como fazer a caracterização dos personagens e estabelecer relações com o(a) protagonista em uma narrativa de ficção.
A escrita de uma narrativa literária em prosa[1] tem como intuito narrar uma história, e para isso precisamos dedicar algum tempo à estruturação da trama e à caracterização dos personagens ou seres que vão compor o texto.
Antes de mais nada, é preciso saber que para ser considerado um texto literário narrativo, ele precisa conter em sua estrutura alguns elementos que são considerados essenciais, que são:[2]
Quadro – Cinco elementos essenciais da narrativa
Personagens: pessoas que estão presentes na história ou representações fictícias de seres humanos, que podem ser descritas do ponto de vista físico, psicológico, social, moral etc. Enredo: história que narra uma sucessão dos acontecimentos. O enredo é o resultado da ação dos personagens, é a sucessão de fatos (aventuras, peripécias ou conflitos). Narrador ou foco narrativo: se refere àquele que conta a história (se participa ou não dos fatos), e a perspectiva pela qual ele conta (se tem uma visão total ou parcial dos acontecimentos). Tempo: o período em que acontece a história (o tempo cronológico é dado em horas, dias, meses ou anos e o tempo psicológico é interior ao personagem, como as suas memórias e reflexões). Espaço: local onde se passa a história (é o ambiente no qual os personagens se movimentam). |
Assim, desses cinco, Cândida Gancho nos informa que a personagem ou o personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação.
A saber, o(a) personagem é a representação dos seres que movimentam a narrativa por meio de suas ações.
Conforme o escritor Antônio Cândido, os personagens “vivem o enredo e as ideias e os tornam vivos”.[3]
Com efeito, eles funcionam como os agentes da narrativa. Isto porque depende deles o sentido das ações que compõem a trama ou enredo.[4]
As relações entre o autor, o narrador e os personagens
Como se sabe, para caracterizar melhor os personagens, faz-se necessário saber como eles se relacionam com outros componentes da história, em especial com o autor e com o narrador.
Nesse sentido, Autor é aquele que produz ou compõe a obra literária. É a pessoa ativamente atuante no todo da obra, incluindo a caracterização dos personagens. O Narrador é o que conta (narra) a história, podendo se apresentar de dois tipos (o onisciente, quando narra em terceira pessoa, e o narrador personagem, quando narra em primeira pessoa e participa da história)[5].
Assim sendo, é o narrador que guia o leitor para a compreensão do texto e das ideias, qualidades e características dos personagens. Estes (os personagens), são os principais responsáveis pela ficcionalidade da obra, porque são eles que, com mais nitidez, tornam patente e constituem a ficção.[6]
Em suma, na mesma obra criada por um autor, podemos encontrar diversos narradores e diversos personagens, que são suas criações ficcionais.
Classificação dos tipos de personagens
Certamente, o ponto de partida para o estudo da narrativa é a identificação do conflito dramático e os elementos que circulam à sua volta através de uma análise descritiva. Assim, primordialmente, precisamos distinguir os seguintes conceitos:[7]
– Enredo (trama ou intriga): é modo como a história é narrada, estruturada.[8] – Conflito: é desenvolvido a partir da ação dos personagens, diz respeito ao conflito de interesses. Conflito é qualquer componente da história (personagens, fatos, ambiente, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor.[9] |
Em seguida, após sabermos a diferença entre trama e conflito, podemos passar à classificação dos personagens utilizando dois critérios:
a) grau de importância para o desenvolvimento do conflito (principal ou secundário); e b) grau de densidade psicológica (plano, plano com tendência a redondo, e redondo).[10] |
Com relação ao grau de densidade psicológica, na sua forma mais pura, os personagens planos, são construídos em torno de uma única ideia ou qualidade; quando há mais de um fator neles, temos o começo de uma curva em direção à esfera (e o personagem se torna plano com tendência à redondo).
De acordo com citação de Antônio Cândido, a prova de um(a) personagem esférico(a) [ou redondo] é a sua capacidade de nos surpreender de maneira convincente. Se nunca surpreende, é plano. Se não convence, é plano com pretensão a esférico”.[11]
Em resumo, os personagens redondos são mais complexos que os planos, isto é, apresentam uma variedade maior de ideias, qualidades e características que, por sua vez, podem ser classificadas em: físicas, psicológicas, sociais, morais etc.[12]
Por conseguinte, na maioria das vezes, é preferível trabalhar com personagens psicologicamente mais redondos.
Então, quantos e quais são os personagens da sua história?
A princípio, além de ter que pensar no personagem principal e em seu antagonista (se for o caso), os escritores iniciantes também precisam planejar com antecedência quantos e quais são os demais personagens da sua história, o que nem sempre é uma tarefa fácil.
Nesse sentido, uma boa dica para sabermos quantos e quais são os personagens da história é apelarmos para os estudos do escritor russo Vladimir Propp, em sua “Morfologia do Conto Maravilhoso”.
De fato, Propp desmembrou o corpus do conto de fadas em funções a serem realizadas. Segundo ele essas funções podem ser agrupadas em esferas de ação, e agrupadas também por personagens.
No entanto, como a análise feita por Vladimir Propp é muito complexa, o professor Wellington Santos faz a mesma análise de forma mais didática e utilizando alguns exemplos de contos para resumir a morfologia em dois tipos de quadros: (1) personagens e (2) ações, que ele chamou de “quadros de análise estrutural de contos”[13].
Tendo em vista que o intuito aqui é a caracterização dos personagens, reproduzimos abaixo apenas o primeiro quadro, onde observamos os seis personagens básicos de uma narrativa.
Quadro 1: PERSONAGENS BÁSICOS – Conto
6 (seis) personagens básicos | Esfera de Atuação (que tipos de ações ele realizar no enredo) |
O herói (ou heroína) | Parte em viagem para realizar uma busca; É colocado à prova; Casa-se com a princesa. É o protagonista |
O antagonista | Faz mal ou causa danos; Enfrenta o herói em combate; Persegue, prejudica ou agride o herói. |
O doador (ou doadora) | Submete o herói a provas; Dá o objeto mágico (o auxiliar) ao herói. |
O auxiliar (ser vivo ou objeto mágico) | Ajuda o herói no seu percurso/ tarefa; Transporta o herói para onde ele necessita ir; Salva o herói na perseguição; Repara um dano/carência; Soluciona tarefas difíceis impostas ao herói; Altera a aparência do herói (dando ou devolvendo forma animal ou humana, dando novas roupas, eliminando um defeito físico etc.) |
A princesa (ou o príncipe) e/ou o pai | Impõe ao herói tarefas difíceis; Dá ao herói uma marca ou objeto que servirá para identificá-lo depois; Desmascara o falso herói; Reconhece o herói; Casa-se com o herói. |
O falso herói (ou falsa heroína) | Parte em viagem para realizar busca; É colocado à prova pelo doador, mas falha; Quer receber o prêmio pelo herói. |
É provável que nem sempre sejam encontrados “em todas as narrativas” “todos os tipos de personagens”, no entanto, esse quadro-resumo serve para ajudar os escritores iniciantes a darem o pontapé inicial no planejamento de seus personagens.
Elaborando um quadro-resumo de caracterização dos personagens
Então, agora que já sabemos quantos e quais são os nossos personagens, podemos utilizar o grau de importância (principal ou secundário) e o grau de densidade psicológica (plano, plano com tendência a redondo, e redondo), para elaborar o quadro-resumo de caracterização dos personagens.
Quadro-resumo de caracterização dos personagens
(Com base no grau de importância para o desenvolvimento do conflito, no grau de densidade psicológica e nos personagens básicos de uma a narrativa)*
Parentesco/ Relação/ Caracterização | Principais | Secundários (coadjuvantes) | ||||
Protagonista (o herói ou heroína) | Antagonista (faz o mal ou causa danos) | Mentor(a) (submete o herói à prova, ou dá objeto mágico) | Auxiliar (ser vivo ou objeto mágico) | Pai/Mãe (outro parente) | Outros (príncipe/ princesa, falso herói etc.) | |
Nome/Apelido | ||||||
Profissão/ Ocupação | ||||||
Feitos/status ou posição social | ||||||
Interesses/ Pretensões/ Objetivos | ||||||
Personalidade (caráter, índole, moral) | ||||||
Características (físicas, sociais, psicológicas) | ||||||
Qualidades/ Pontos fortes | ||||||
Defeitos/ Pontos fracos | ||||||
Outros |
A fim de criar bons e envolventes personagens você precisa definir nomes e descrever ideias, qualidades, características e personalidades (dominantes e secundárias).
Aliás, procure conhecer seus personagens. Pense neles durante o dia e à noite, imagine como eles agiriam ou reagiriam às diversas situações com as quais poderiam se confrontar no dia a dia.[14]
Enfim, conforme o(a) escritor(a) iniciante perceba a necessidade de novos personagens ou sua melhor caracterização, deve atualizar o quadro-resumo sugerido.
Notas
[1] De fato, quando vistas por uma perspectiva que inclua as duas classificações que constituem a base primária da literatura em gêneros (ritmo e conteúdo histórico), podemos chegar ao mesmo entendimento de Cândida Gancho (2006: 5), de que narrativa literária de ficção é o mesmo que narrativa literária em prosa.
[2] Em suma, a narrativa é estruturada sobre cinco elementos principais: personagens, enredo, narrador, tempo e espaço (GANCHO, 2006: 4).
[3] De acordo com Antônio Cândido et all. (1970: 3).
[4] Conforme Angélica Soares (2007: 45).
[5] De acordo com Ezequiel Macedo e Jamile Silva (2009: 35).
[6] De conformidade com Antônio Cândido (2007) apud Ezequiel Macedo e Jamile Silva (2009: 35).
[7] Conforme Tomachevisky (1971) apud Lídia Egas (s/d: 4 – ver bibliografia).
[8] Na verdade, sendo o resultado da ação das personagens, o enredo (também chamado trama ou intriga) só adquire existência através do discurso narrativo, isto é, do modo especial com que se organizam os acontecimentos. (SOARES, 2007: 43).
[9] Conforme Cândida Gancho (2006: 8).
[10] A saber, em nossos dias, Forster retomou a distinção de modo sugestivo e mais amplo, falando pitorescamente em “personagens planas” (flat characters) e “personagens esféricas” (round characters). (FORSTER, 1949 apud CÂNDIDO, et all 1970: 11).
[11] Conforme E. M. Forster (1949) apud Antônio Cândido (1970: 11).
[12] De acordo com Cândida Gancho (2006: 13).
[13] Aliás, para um estudo mais detalhado, sugerimos consultar diretamente a obra do professor Wellington Santos: “Caderno de Leitura Literária Contos de Fadas: velhos personagens, novas roupas” (ver bibliografia).
[14] De acordo com MARTINZ, Juliano. Como escrever um livro infantil. In Livrarias Corrosiva (ver bibliografia).
Referências bibliográficas
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7ª ed. revista e atualizada. São Paulo: (Série Princípios; 207) Ática, 2006.
MACEDO, Ezequiel B. I. & SILVA, Jamile M. Um estudo da caracterização da personagem feminina no conto Retábulo de Santa Joana Carolina. Dissertação defendida perante a Universidade Federal de Pernambuco. Revista dos Alunos da Graduação de Letras “Ao pé da letra”, versão online – ISSN 1984-7408, v. 11.2 – 2009.
SANTOS, Wellington. Caderno de leitura literária Contos de fadas: velhos personagens, novas roupas. Itabaiana: Nossa S. Glória: Lumia- Escritório de Design, Mestrado Profissional em Letras, Universidade Federal de Sergipe. 2017. 69p.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. 7ª ed. São Paulo: (Série Princípios; 166) Ática, 2007.
Sites ou Blogs consultados
EGAS, Lídia Maria. Conteúdo estruturante: Discurso como prática social versus Conteúdo Específico: Texto narrativo. Texto para o ensino médio (Português e Literatura). Colégio Estadual da Mota Fernandes (S/D). Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/producoes_pde/md_lidia_maria_egas.pdf. Acessado em 14/03/2024.
CÂNDIDO, Antônio; ROSENFELD, Anatol; PRADO, Décio A. & GOMES, Paulo E. S. A Personagem de Ficção. 2ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1970. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3923731/mod_resource/content/1/Antonio%20Candido%20-%20A%20Personagem%20do%20romance.pdf. Acesso em 14/03/2024.
MARTINZ, Juliano. Como escrever um livro passo a passo. Divulgado por Juliano Martins no site da Livraria Corrosiva e disponível em https://corrosiva.com.br/como-escrever-um-livro-passo-a-passo/#crie-personagens. Acesso em 25/04/2022.
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Por Francisco Hélio de Sousa
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