O conflito e o planejamento de um livro: como começar a criar uma narrativa a partir da adição de um conflito a um texto que retrata uma situação comum?
Um questionamento bastante comum entre os escritores iniciantes é o que diz respeito ao que deve constar em uma narrativa de ficção e que entendemos estar diretamente relacionado com o conflito. Ou seja, “ o que é necessário para criar uma boa história ? ” [1]
O escritor italiano Umberto Eco entende que para contar uma narrativa criativa, ficcional, é necessário primeiro “ construir um mundo”, “o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores ”. Nesse sentido, ele apresenta como exemplo a seguinte reflexão sobre o ato de narrar: [2]
Constrói-se um rio, duas margens, e na margem esquerda coloca-se um pescador, e se esse pescador possui um temperamento agressivo e uma folha penal pouco limpa, pronto: pode-se começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer.
( Umberto Eco,1985: 21).
Feita essa reflexão, observe o seguinte texto que poderia ser de origem cotidiana:
“Dona Conceição é uma excelente comerciante. Hoje fui à sua loja, que, como sempre, estava cheia de gente. Ela atendeu a todos com muita simpatia, sem perder o bom humor e sem perder tempo. É por isso que muita gente gosta de fazer compras ali. Voltei para casa satisfeito(a) com as compras que fiz e com a atenção recebida.”
( William Cereja & Carolina Viana, 2023: 146).
Veja que nesse texto simples, sobre a loja da simpática e bem humorada “ Dona Conceição ”, temos uma “história” completa, pois há nele os elementos fundamentais de uma narrativa: fatos/enredo, personagens, lugar, tempo e um narrador que conta a história. [3]
Entretanto, é só uma história comum , que não atrai o leitor, pois falta algo inquietante, que surpreenda.
Em outras palavras, falta um conflito, para que a história se torne uma obra literária ficcional[4], uma narrativa emocionante.[5]
A importância do conflito na narrativa
O conflito é desenvolvido a partir da ação dos personagens, diz respeito ao conflito de interesses.
Ele acontece quando quaisquer dos componentes da história (personagens, ambiente, ideias, emoções etc.) se opõem um ao outro, criando uma tensão que organiza os fatos narrados e, consequentemente, prende a atenção do leitor. [6]
Nos textos narrativos literários, ou seja, na prosa de ficção,[7] esses elementos fundamentais (personagens, enredo, narrador, tempo e espaço) se articulam em torno de um conflito que gera toda a narração da solução (ou não) do conflito.[8]
Quadro – cinco elementos essenciais da narrativa
– Personagens: pessoas que estão presentes na história ou representações fictícias de seres humanos, que podem ser descritas do ponto de vista físico, psicológico, social, moral etc. – Enredo: história que narra uma sucessão dos acontecimentos. O enredo é o resultado da ação dos personagens, é a sucessão de fatos (aventuras, peripécias ou conflitos). – Narrador ou foco narrativo [9] : se refere àquele que conta a história (se participa ou não dos fatos), e a perspectiva pela qual ele conta (se tem uma visão total ou parcial dos acontecimentos). – Tempo: o período em que acontece a história (o tempo cronológico é dado em horas, dias, meses ou anos e o tempo psicológico é interior ao personagem, como as suas memórias e reflexões) – Espaço: local onde se passa a história (é o ambiente no qual os personagens se movimentam). [10] |
Desses elementos fundamentais, o enredo[11] apresenta duas questões muito importantes a serem observadas na elaboração de uma narrativa:
a) a sua natureza ficcional, ou seja, a verossimilhança, que é a sua lógica interna e que o torna verdadeiro para o leitor (que será melhor trabalhada em outro momento) [12] e
b) a sua estrutura (vale dizer, as quatro partes que o compõem), que detalhamos abaixo:[13]
Quadro – As quatro partes da estrutura do enredo
– Situação inicial : é onde se dá a apresentação do enredo, onde são apresentados os personagens e dadas as primeiras noções sobre o cenário. – Complicação : onde se dá o desenvolvimento da trama, é uma história em movimento, onde aparecem os conflitos, problemas e obstáculos que os personagens vão enfrentar. – Clímax : o ponto alto, de maior tensão do enredo, é o que chama mais a atenção dos leitores, onde o conflito atinge o seu ápice. – Desfecho : onde a trama se resolve (onde se dá a solução dos conflitos). |
Assim, em termos de estrutura, o conflito , via de regra, determina as partes do enredo, onde a narrativa evolui da situação inicial (apresentação), na qual são definidos os personagens, as circunstâncias do enredo e a ambientação; prossegue com a complicação , quando se encadeiam os fatos e se desenvolve o conflito, até que ele atinja o momento de maior tensão ( clímax ), no qual o conflito chega ao seu ponto máximo e após o qual temos o desfecho da história. [14]
Voltando ao texto de origem cotidiana…
Observada a importância do conflito para criar uma boa narrativa, já podemos voltar ao texto simples sobre “ a loja da Dona Conceição ” e pensar em como transformar essa “história comum” em uma narrativa ficcional emocionante, com um final que surpreenda os leitores (seja um conto, uma novela ou um romance).
Para isso, podemos adotar um método que adicione à trama [15] um conflito , junto ao qual também podemos adicionar problemas , obstáculos, ou dificuldades que sejam inquietantes o suficiente para chamar a atenção do leitor. [16]
O método que defendemos começa com a ideia inicial (a representação mental de algo concreto, abstrato ou imaginado). [17] A ideia é o componente mais importante do projeto de elaboração de um livro (independente da forma como ela tenha surgido, se por insight , brainstorming , anotação, dica de amigos, observação de um fato etc.).
Então, para criarmos uma narrativa de ficção, podemos, por exemplo, utilizar como inspiração as informações contidas nas já citadas “ reflexões de Umberto Eco sobre o ato de narrar ” e no texto sobre “ a loja da Dona Conceição ”, para partir em busca da “ ideia inicial” [18] , que vai servir de base para o planejamento do livro.
O conflito e o planejamento de um livro
Tendo os textos citados como referência, podemos dar início à jornada de construção da narrativa a partir da elaboração de uma frase que descreva a cena, situação ou comando que relacione o problemático “pescador [que] possui um temperamento agressivo e uma folha penal ‘suja’”, com asimpática e bem humorada comerciante.

Novamente parafraseando Umberto Eco, “antes de tudo, para escrever um livro, o ato de escrever vem depois. Primeiro precisamos lê, preencher fichas, desenhar retratos de personagens, rascunhar mapas dos locais e esquemas de sequências temporais”.
Assim, para “construir um mundo”, “o mais mobiliado possível” antes de começar o processo de escrita criativa, podemos adotar o que chamamos de os cinco primeiros passos para projetizar um livro, que são:
Continua em… O conflito dramático(2) – Planejamento do texto de um livro de ficção

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Notas
[1] Nesse contexto, os termos história e narrativa são usados como sendo sinônimos [Conf. Lígia Leite (2007: 86)].
[2] Conforme Umberto Eco (1985: 21), citado por William Cereja & Carolina Viana (2023: 149).
[3] Conforme Cândida Gancho (2006: 4).
[4] De acordo com Olga Kempiska e Roberto Souza (2012: 50).
[5] De acordo com CANAL CECIERJ, s/d: Pág. 03 – ver bibliografia).
[6] Conforme William Cereja & Carolina Viana (2023: 146).
[7] De acordo com Cândida Gancho (2006: 5).
[8] PLATAFORMA PROVA PARANÁ. Conexão Professor: Avaliação Diagnóstica (ver bibliografia).
[9] De acordo com Lígia Leite (2007: 93).
[10] Também denominado ambiente, cenário ou localização, o espaço é o conjunto de elementos da paisagem exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico), onde se situam as ações dos personagens (SOARES, 2007: 52)
[11] Conforme Angélica Soares (2007: 45).
[12] Verossímil não é necessariamente o verdadeiro, mas o que parece sê-lo, graças à coerência da representação-apresentação fictícia (LEITE, 2007: 13).
[13] Conforme Cândida Gancho (2006: 17).
[14] Essa ordem da estrutura do enredo pode (e deve, sempre que possível) ser subvertida.
[15] Trama não significa reviravoltas inacreditáveis ou suspense em alta tensão e surpresas chocantes. Significa, sim, a seleção necessária de eventos e sua padronização ao longo do tempo (MCKEE, 2006: 55 apud BORGES, 2019: 36). É o mesmo que enredo ou intriga.
[16] Problema: é uma determinada questão ou um determinado assunto que requer uma solução. Segundo a filosofia, um problema é algo que perturba a paz e a harmonia de aquele(s) que têm algum (que passam por isso). Para esse intuito, é importante saber a diferença conceitual entre trama, conflito e problema.
[17] Utilizamos o Formulário I – Levantamento prévio de informações, do método: Meu Sonho Meu Livro.
[18] Conforme Umberto Eco (2003: 277/305), texto adaptado por Luciane Raupp – ver bibliografia).
Bibliografia
BORGES, Aline M. X. Homssi. Personagens e universos narrativos em adaptações e narrativas transmídia – Análise de “A dança dos dragões” e produtos derivados (selo Teses & Dissertações). Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto: UFOP, 2019.
CARNAZ, Maria E. A. R. Da Criatividade à Escrita Criativa (dissertação de mestrado em Didática da Língua Portuguesa). Coimbra: Instituto Politécnico de Coimbra, da Escola Superior de Educação, 2013.
CEREJA, William & VIANNA, Carolina D. Português: Linguagem, 9º ano . 10 ed. São Paulo: Atual, 2023.
ECO, Umberto. Sobre a literatura . Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 277 a 305. Texto adaptado pelo prof. Luciane Raupp, FACCAT, RS, sob o título: Como se escreve? Disponível em http://www.tirodeletra.com.br/como/UmbertoEco.htm.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7ª ed. revista e atualizada. São Paulo: (Série Princípios; 207) Ática, 2006.
KEMPISKA, Olga Guerizoli & SOUZA, Roberto Acízelo Quelha. Teoria e Literatura I. v. 2. Rio de Janeiro: Fundação Centro de Educação Superior à Distância do Estado do Rio de Janeiro – CECIERJ, 2012 (pág. 15).
LEITE, Ligia Chiappini Moraes, 1945 – O foco narrativo (ou a polêmica em torno da ilusão). 10 ed. Série Princípios. São Paulo: Ática, 2007.
SOARES, Angélica. Gêneros literários. 7ª ed. São Paulo: (Série Princípios; 166) Ática, 2007.
Outras referências bibliográficas
CANAL CECIERJ. Reforço Escolar Português: Analisando o enredo… Dinâmica 6: 3ª Série, 3º Bimestre. S/d .Disponível em: https://canal.cecierj.edu.br/ 012016/fdb10ec8e2eb340d90a0f5254d350046.pdf. Acesso em dez/2023.
CONCEITO.DE.(Equipe editorial). Problema – O que é, conceito e definição. Conceito.de. https://conceito.de/problema. (19 de janeiro de 2011). Atualizado em 28 de agosto de 2019. Acesso em dez/2023.
OFICINA DE TEATRO: TEATRO TOTAL (Assessoria de Comunicação). O Conflito Dramático. Divulgado em 08/08/2011, disponível em: ttps://teatrototalilheus.blogspot. com/2011/08/o-conflito-dramatico. Acesso: dez/2023.
PLATAFORMA PROVA PARANÁ – Conexão Professor – Avaliação Diagnóstica (Apresentação do PowerPoint). Divulgado em 2019, disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/conexao_professor/2019/live11_10_descritores portuguesem.pdf. Acesso em dez/2023.
Por Francisco Hélio de Sousa
fhelios@gmail.com